Felicitate

Felicitate: Felicidade em latim. FELICITATE Para todos nós... =]

segunda-feira, novembro 27, 2006

Dolores...

Hoje o post é um conto hilário e real da Ivana Arruda Leite.

Dolores 1

Quando as pessoas me olham na rua, são capazes de apostar: lá vai uma mãe e uma esposa exemplar. Engraçado isso de parecer o que não se é. Eu também diria se não soubesse quem sou. Conhecendo-me como conheço fico pensando de onde vem essa impressão. Talvez da docilidade e submissão que aparento ter. Na verdade, a docilidade nunca esteve entre as minhas virtudes. Muito menos a submissão. Perguntem a Miguel se sou esta santa que aparento e ouvirão uma sonora gargalhada. Garanto que ele fará tantas reclamações que parecerá tratar-se de outra pessoa. Ele dirá que sou péssima dona de casa, não sei passar suas camisas, não lavo minhas calcinhas e os móveis vivem cobertos de poeira. Além de não cuidar dos nossos filhos como toda a mãe deveria. Diferente de Miguel, eu diria que o que me impede de ser esposa e mãe exemplar é o meu temperamento. Tenho um gênio terrível. De manhã acordo de um jeito, na hora do almoço estou de outro e à noite pior ainda. Nenhuma mãe ou esposa exemplar pode ser tão imprevisível. Pode ser porca, relaxada, preguiçosa, péssima cozinheira, mas imprevisível não. Faço padecer os que vivem ao redor. Já pedi que me deixem sozinha, que procurem mãe e esposa melhor por aí. Mas eles preferem continuar me azucrinando. Deixem-me a sós, eu lhes peço do fundo do coração. Outro dia fui me confessar. Não sei porque, mas, de repente, me deu uma culpa danada por querer afogar os meus filhos no vaso sanitário, dar-lhes toddy com formicida. Quando o padre me viu chegar foi logo abrindo os braços e dizendo: que pecados pode ter você, uma mãe e esposa exemplar? Dei-lhe as costas e saí pisando duro. Meus passos ecoavam pela igreja toda. Na rua, ouvi algum comentário: que mulher boa é a Dolores! Esse inferno não tem fim. Pra falar verdade, acho que nasci com vocação pra puta. Me vejo livre e feliz sem marido nem filhos, solta na vida e no mundo. Pois não é que eu estava encostada no balcão do posto de gasolina, com cigarro no canto da boca, batom vermelho e radinho de pilha no ouvido quando ouvi um motorista comentar: dizem que é excelente mãe de família. Todo vagão descarrilha um dia, por que só eu tenho que andar na linha?

Dolores 2

O que me aborrece nessa vida de puta é esse maldito ar de mulher séria. Onde quer que vá, as pessoas me olham, olham meu corpo, meu jeito de andar e comentam: lá vai uma mulher séria. Se ao menos fosse verdade, vá lá. Mas não é o caso. Nunca foi. Gosto de andar sem rumo, sentar em botecos, me sentir sem eira nem beira, ouvir radinho de pilha. Tem garota que vira puta pra pagar remédio da mãe, cachaça do pai, droga pro namorado. Essas, pobrezinhas, não têm escolha, quando vêem já estão. Meu caso é diferente. Sempre fui moça bonita, bem feita de corpo, lindos cabelos, olhos amendoados, cinturinha de pilão, coxas grossas, canela fina, bonita da cabeça aos pés. Fui até convidada pra ser miss na cidade onde eu morava. O problema era o meu temperamento, insuportável. Essa menina acaba com os meus nervos, minha mãe dizia à beira da loucura. Maldito gênio tem essa menina, dizia meu pai, vai acabar solteira, não tem homem que aguente mulher assim. Na base do grito eu ia conseguindo tudo o que queria. Menos namorado. Aí não tinha jeito. Eu via aquelas meninas feinhas, magrinhas, todas casando e eu nada. E minha mãe me atazanando, você vai ficar pra tia, não tem homem que te aguente. Era gozação pra tudo o que é lado, solteirona, solteirona, e o enxoval embolorando na prateleira. Aquilo foi me dando tanto ódio que eu resolvi ser puta. Certa vez, no baile da Primavera, depois de tomar chá de cadeira a noite inteira, eu chamei de lado o moço mais feio da cidade, aquele que também não tinha com quem ficar, e lhe propus casamento. O pobre começou a rir um riso de boca torta e bater a cabeça feito um pica-pau no pilar. Seu corpo balançava todo sacudido por um riso ardido, fininho, mais parecendo um ataque epilético. Quando sossegou, me olhou com olhinhos vesgos e perguntou:- Por que comigo, você nem me conhece?- Porque fui com a sua cara, respondi. Topa ou não topa? Só eu sabia de onde vinha a força daquela decisão. Casar com Alfeu seria subir ao Olimpo das putas e lá ser coroada e maioral. Era isso que eu queria. Alfeu topou. Ia toda a noite na minha casa, ficávamos no terraço folheando revistas, aos domingos íamos à missa de braço dado. Quando os amigos perguntavam como ele me aguentava, respondia: ela é uma boa moça. Em três meses eu estava casada. Me plantava na janela da casa que ele me dera, punha um vestido bem decotado, fincava os cotovelos no batente e passava a tarde fumando e ouvindo radinho de pilha, uma puta perfeita. Com o pobre do Alfeu sempre tive paciência. Como brigar com um homem bom como aquele? O tempo passou, Alfeu foi transferido para São Paulo, mês que vem completamos bodas de prata. Nem no enterrro da minha mãe eu voltarei àquela merda de cidade. De vez em quando encosto num balcão de padaria e bebo uma cerveja. Sozinha. Nunca perdi a virgindade, mas tenho a certeza que sou puta. Sei que sou.

Dolores 3

Maldita a hora que minha mãe me jogou nesse orfanato. A vaca embarrigou mas não quis saber da criança. Seu negócio era botar a perna no mundo. Me deixou aqui nas mãos destas freiras que me deram casa e comida, mas me privaram do melhor. Mesmo sem conhecer, tenho certeza que o melhor está lá fora. O melhor está no que os homens trazem no meio das pernas. E eu aqui, com este vestidão enorme, preto, calorento, parecendo um urubu. Fiz meus votos há vinte anos. O que sei do mundo, escuto num radinho de pilha que levo escondido pra onde vou. Vida mesmo têm as putas que dormem cada noite com um homem diferente, num lugar diferente, beijando boca diferente. E eu aqui, ferindo meus joelhos, passando fome, esfregando o chão, cercada por essas malucas que nunca deram beijo na boca. Se Deus me desse uma chance, uma outra vida pra eu viver, juro que pedia pra ter ido com minha mãe. Seríamos putas as duas, eu numa cama, ela na outra, eu com um homem, ela com outro. Depois a gente trocava e comparava qual dos dois foi melhor. Era isso que eu queria pra mim e Deus sabe que eu não estou mentindo.

Dolores 4

Meu nome é Dolores e eu sou puta. Que destino infeliz o meu. Dormir cada noite com um homem, numa cama diferente, aguentar bafo de bêbado, homem banguela, fedido, mal educado, triste sina a minha. Quem dera ser dona de casa, destas bem comportadas, com maridão do lado, filho pedindo toddy, roupa pra passar, comida pra fazer. Quem dera abrir as pernas prum homem só a vida inteira. Ou não abrir se não tivesse vontade. Mas Deus quis que meu destino fosse outro. Aliás, Deus, que é pai e me criou, sabe que meu sonho mesmo, de verdade, era ter sido freira. Passar a vida toda dando só pra Nosso Senhor. Mas era tanto remédio pra mãa, cachaça pro pai e droga pro namorado que não teve jeito.


Ivana Arruda Leite, in Putas – Novo Conto Português e Brasileiro, Ed. Quasi, 2002

Vai entender a mente da mulher....

1 Comentários:

  • Às 2:59 PM , Blogger Thiago César disse...

    É Tati, vai entender...
    Esse conto parece um delírio. Coisas de uma mente nada normal.
    O mais incrível é que eu percebi que poderia ter lido de baixo pra cima sem problemas mesmo...

    Beijos!

     

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